Não se tendo lido sistematicamente os escritos de Teresa de Saldanha, esta análise (ainda por cima breve) a uma dimensão da sua intensa e profusa práxis, pode constituir-se estreita: esperemos que escorreita. Ainda assim, arrisca-se o exercício.
Desde que há 21 anos e 81 dias, tivemos o contacto primeiro com Ela, uma característica saltou à vista: o Silêncio. Plasmado no lema profundamente revelador, intimamente sedutor: “Fazer o bem sempre e em silêncio” e que iremos, hoje, aqui, esmiuçar e analisar mais adiante.
É este silêncio que vamos… vozear; portanto pensar; alto. Um silêncio que não é um simples adorno, que não é superficial, muito menos supérfluo. Um silêncio que poderá ter começado por ser circunstancial, prudente e necessário face aos condicionalismos e animosidades que sempre acompanharam a sua acção: um silêncio utilitarista e pragmático, até. Mas não é deste que, importando, não importa falar, agora.
É do silêncio estrutural- pedra basilar, eixo central donde deriva todo o seu fazer concreto e palpável na vida também ela concreta das pessoas, únicas e irrepetíveis de qualquer condição, especialmente as pobres e indefesas.
De facto, podemos afirmar que toda a sua vida, ou pelo menos a partir de um certo ponto da sua vida, Teresa como que vive num permanente exercício de silêncio interior, num pensar reflexivo metódico que a conduz à própria contemplação (ao alcance de poucos).
Mas este silêncio interior não é mudo, não é cego, não fica enclausurado dentro de si própria nem nos limites de um qualquer espaço físico (ainda que com mais gente, como os conventos tradicionais). Não. Objectivamente, tem uma finalidade por um lado espiritual (podemos dizer até que filosófica) e por outro educacional.
Espiritual porque tem como objectivo dar a si própria e às restantes irmãs uma sólida formação de encontro profundo e abnegado com Deus e com a transcendência que acrescente algo mais, que enriqueça a actividade apostólica, bem ao estilo do carisma dominicano.
Educacional, na medida em que a sua obra é feita de paragem: para perceber e assimilar o mundo que a rodeia; de escuta: para entender os anseios e às vezes os devaneios do próximo; é feita de olhar: para ver verdadeiramente e ir de encontro aos que mais precisam e assim trazê-los e inseri-los nas comunidades e sociedade em geral.
Esse silêncio interior, profundamente reflexivo e, se calhar, radicalmente reflexivo) que ela vai aprendendo e desenvolvendo (com influências e sugerências como é natural) para se escutar a si mesma e assim olhar o Outro com a paciência, a atenção, a humildade, a misericórdia, o perdão, a disciplina… enfim, com a Fé inabalável que a caracteriza e a humaniza na visão de quem com ela priva e sente a sua acção, a sua presença- até e ainda hoje.
Um silêncio interior que contrapõe ao silêncio exterior, e ainda que possam correlacionar-se são completamente distintos, uma vez que o exterior é aleatório e, não raras vezes pouco acrescenta, já o silêncio interior é bem intencional abre toda uma perspectiva de uma realidade nova para a própria realidade de si e da sua existência. E foi este que ela cultivou superlativamente. Este silêncio que não é fim em si mesmo; que é elevação, mas que também é acção e, por essa via, mudança operando actos verdadeiramente transformativos na sociedade, que foi o que Teresa de Saldanha operou.
O silêncio interior que ela trabalhou, apurou e depurou, certamente predispô-la a ouvir todo o tipo de silêncios que a ajudaram também e assim a escutar melhor o seu próprio silêncio interior, que reorientou para a vida prática; que a ligou à essência do seu Ser e a religou à Vida e ao Mundo como tal.
Portanto, o silêncio que ela cultiva é um silêncio actuante, pleno de presença de sentido, de uma presença humana de sentido, que lhe confere um humanismo integral em profunda união com o sagrado.
Esse silêncio que, por certo, lhe causou receio por estar sem filtros com ela própria; talvez um medo que lhe soprou e insuflou angústias e interrogações e dúvidas sobre o seu Ser, o Mundo, o futuro e o Destino seu e dos seus. Mas que venceu. E nos convenceu do seu triunfo sobre tais intimidações próprias e alheias. Como? persistindo na sua missão, interpelando, perguntando, ultrapassando desafios e colocando ela própria novos desafios: solucionando-os e confiando… em Deus e nos outros; obviamente em si própria.
No fundo, o que faz Teresa (sem o saber talvez, mas certamente intuindo e pressentindo) é uma pedagogia do silêncio que se ancora e respalda numa espécie de pedagogia do escutar e do olhar. E é essa pedagogia que hoje tem cada vez mais sentido no projecto que ela criou e nas Obras que a Congregação mantém.
No campo da educação- tão caro para ela- seria de todo primordial, agora, aprender-se e fazer-se uma introdução, uma iniciação ao silêncio, à arte que é a da escuta activa; a começar pelos professores, educadores e demais agentes educativos. Por forma a que a Palavra e o seu poder como tal, se faça ouvir; de modo que as crianças e jovens não tenham medo de escutar, de se escutar; de pensar e de se pensar, ainda que seja difícil, desconfortável e até um exercício às vezes deprimente, certamente pungente.
A juventude, necessita pensar (e quando falamos em pensar nãos nos referimos à torrente de pequenos pensamentos, de pequenos pensares desmesurados que constituem quase como um refugo, quase lixo com que todos somos assolados e que precisamos de controlar e disciplinar), um pensar reflexivo que lhe dê as ferramentas necessárias ao pensamento crítico e estruturado, capaz de fazer pontes neste tempo polarizado no Nós e Eles, nos bons e maus. Que lhes permita encontrar o destino, ou pelo menos o caminho.
Mesmo no diálogo, que se estabelece nas mais diversas situações educacionais ou informais, só ganha em profundidade quando pontuado pelo silêncio – enquanto ausência de ruído e depois, claro está, pelo silêncio que é escuta, que é respeito, que é confiança, sinceridade e empatia; e não silenciamento, refira-se e sublinhe-se.
Precisamos ensinar às novas gerações o valor e o valor do sentido, do silêncio interior, porque é dele que germina, que deriva a Palavra que será ouvida, problematizada, seguida, concretizada e dará frutos.
Voltando à frase-chave da vida de Teresa: “Fazer o bem sempre e em silêncio”, reparemos que a palavra “silêncio” aparece e parece aqui ser um simples adorno, um simples adereço, uma adição, uma necessidade (que também é) à parte principal da frase “fazer o bem sempre”; mas quando analisamos em e com profundidade, e à luz de toda a acção e obra da fundadora, esta ligação feita pela palavra “e” (ainda que não apareça em muitos edições, mas está subentendida) dá uma dimensão totalmente aprimorada, (arriscando-se dizer nova, na compreensão) a esta frase.
A conjunção “e” na sua função de ligação, como que opera uma religação, uma dupla ligação- não contrária, muito menos contraditória- fazendo com que a palavra “silêncio” passe de ser não só subsequente, mas também antecedente na frase; a palavra “silêncio” que é ligada, que é juntada ao “fazer o bem sempre”, e que passa agora a ser também ela própria ligação e junção; a palavra “silêncio” que se torna sujeito; um sujeito que pede um complemento, qual? «Fazer o bem sempre»; de que modo? “Em silêncio”: como se a frase ficasse desta forma: “o silêncio para fazer o bem sempre e em silêncio”. No fundo, haveria uma pequena reconfiguração do Significante, mas o Significado permanece, porque já contido na frase original, e talvez só agora trazido à exterioridade e à análise (pretensão a nossa, tal!..).
Assim, é o Silêncio estrutural (interior, reflexivo), que vai dar origem ao “fazer o bem sempre”, e também ao silêncio superficial (exterior, prudente, circunstancial) no “em silêncio”. Portanto, o Silêncio torna-se- ou melhor- é (porque sempre foi) causa e consequência do «fazer o bem sempre».
É causa, porque através desse silêncio maturado- que se faz pensamento primordial em acção- e que Teresa impõe a si própria, mas que é natural nela ainda assim, lhe permite reclamar um sentido para o sentido; lhe permite planear e efectivar toda a sua Obra, e todas as pequenas boas obras do dia-a-dia; cita-se: «desejo fazer o bem… o importante é criar raízes profundas de virtude e santidade nos corações». Ora, só alguém que sabe da força do silêncio e da força do seu silêncio (que aliás nunca podia ser só mera ausência de ruído e ser só recato e discrição), pode afirmar e proclamar que o importante é criar raízes profundas. Essas raízes só poderiam ser criadas no Silêncio estrutural e orante, para depois as poder lançar às demais gentes através da contínua bondade do seu agir, contagiando todos ao seu redor.
O Silêncio também é consequência do «fazer o bem sempre» pois- se a ela própria se impõe O silêncio para criar as tais raízes profundas e as poder estender às pessoas- aos outros propõe silêncio na feitura desse mesmo bem, uma vez que, e cita-se «… não me importa que os outros o saibam, que os outros o vejam…» ou «É necessário trabalhar em silêncio, com prudência…» e ainda «… pois assim se fazem as obras de Deus… sem ostentação, é esse o nosso espírito…”. E poderíamos continuar.
Mas continuando a falar do Silêncio-estrutura, que estrutura todo o Fazer de Teresa de Saldanha, podemos mesmo até dizer que ele- o silêncio- como que delineia a sua acção e esta por conseguinte delineia o silêncio numa interacção profundamente dinâmica, simbiótica, visceral, inseparável, contínua; numa interacção plena de possibilidades, e por essa via de impossibilidades que ela volta a transmudar em possibilidades e em oportunidades pela sua insistência e persistência em teimar; em teimar encontrar soluções, ou pelo menos caminhos… de mudança…
E se atendermos a outra das suas frases «Adoremos em silêncio os decretos da Providência», numa primeira leitura ficamos com a sensação de uma certa passividade, de uma certa resignação e impotência até. Mas analisando- a à luz do já atrás referido, estamos em crer que tal concorre, mais uma vez para aquilo que é globalidade da sua vida: o silêncio que lhe permite a prudência pensada, reflectida, planeada, agida e fecunda.
A aceitação desses decretos não é unidireccional, e directamente da Providência para ela; uma vez que Teresa não teve propriamente um encontro místico que lhe ditasse, que lhe dissesse- ipsis verbis- o que fazer especificamente; antes um chamamento, um sentimento fortíssimo, ainda que eventualmente místico, se quisermos. Assim, esses decretos são intuídos pelo silêncio, são devolvidos à procedência, portanto à Providência, que lhos reenvia outra e outra vez, numa verdadeira comunicação em comunhão, bidireccional, partilhada, ao alcance de uns poucos na história humana: esse silêncio; o Silêncio último que lhe permite aceder ao prelúdio, ao limiar da apreensão, da compreensão do Todo, do Indizível.
Na caminhada da sua existência, Teresa cultivou a perseverança, alicerçada na esperança para trilhar caminhos duros e espinhosos. Mas até nela se denotam algumas agruras pontilhadas com algumas desesperanças: umas silenciosas desesperanças que, ainda assim, a não fazem desistir, antes a incitam a continuar, determinada pontuando-as com o seu agir metódico de fazer o bem.
Essas silenciosas desesperanças, que às pessoas do seu tempo (como a nós agora) as deprimia pelo constatar da inumanidade da humanidade, pela maldade e misérias presentes a cada passo e que as fazia (num exercício de fingimento e de auto convencimento social) desacreditar da bondade humana, e assim as fazia cair numa espécie de impercepções consensuais, na medida em que ao não querer ver das crueldades da pessoa humana, como que- consensualmente e por vontade- as pessoas não percepcionavam, não davam muita importância, não ligavam ao mal que à volta graçava e era (e é) evidente.
Mas Teresa, fruto do seu silêncio-estrutura, transforma as suas (e as dos outros, também) silenciosas desesperanças em silenciosas acções; «quando mesmo seja às escondidas» – diz ela; e diz mais: «o único meio de se poder navegar neste mundo e na época em que estamos é fazer o bem»; transforma-as em actos verdadeiramente transformativos; na crença, na esperança (real) que pode mudar algo da condição humana no presente e no futuro (que é sempre presente!) através da educação das crianças e jovens; através do «Fazer o Bem sempre e em silêncio».
Como que rematando, Teresa de Saldanha prevaleceu: a sua mensagem prevalece, a sua obra prevalece pois a sua Palavra prevaleceu; porque ela (a palavra) proveio desse tal silêncio- um silêncio vivo- que a alimentou, a amparou e a mandou para o mundo em acções e contra-acções de que todos vós aqui sois exemplo.
Saibamos que não sabemos tudo, nem podemos fazer tudo, nem fazer milagres o que em algumas circunstâncias bem necessários seriam; mas saibamos ainda assim que, na esteira da nossa fundadora, podemos reflectir e reflectir-nos melhor e assim ajudarmos melhor os outros, especialmente os que nos estão confiados.
Saibamos descobrir o silêncio: o Silêncio de Teresa de Saldanha. Um silêncio que é como uma marca da identidade da congregação, que nos ajudará com certeza a ultrapassar os novos desafios que cada época apresenta; uma vez que esses mesmos desafios estão sempre presentes e são sempre presente.
De facto, se fizermos o bem, é bom; se fizermos o bem sempre, é muito melhor; se fizermos o bem sempre e em silêncio, é quase elevação; se fizermos o bem sempre em silêncio e a partir do silêncio, é a perfeição. Tentemos, pelo menos… Ser… um pouco melhores.
Quando se faz um trabalho interpretativo dos escritos de alguém, e que pode constituir uma abordagem no limiar da hermenêutica (passe a ousadia), é possível que a análise que se faça possa ser diferente ou até mesmo oposta à da intencionalidade do autor. Cremos ou queremos crer que tal aqui não tenha sido o caso, mas… As análises estão sempre sujeitas à intuição de quem as faz, à sua sensibilidade, ao contexto do seu presente, às suas motivações e valorações, e a um sem fim de nuances que tanto podem aportar esclarecimento valorativo, como o contrário. Espera-se aqui, que se tenha, ainda que humildemente, valorizado uma dimensão (de grande dimensão) da vida de Teresa de Saldanha até agora pouco abordada, pensamos.
Saibamos descobrir o silêncio: o Silêncio de Teresa de Saldanha.
Luís Filipe Soares – Vila Mendo, Guarda (Casa da Sagrada Família)

